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Como manter um coração tranquilo? (كيف تطمئن القلوب)

Mais importante ainda, pense em todo o tempo quando nossos corações estão separados da luz e do amor de Allah, tanto que até esquecemos a alegria que estamos perdendo

O Imam Ibn Al Jawzi (597 da hégira – 1201) contou uma história poderosa que eu espero que nos leve diretamente ao objetivo deste artigo:

“Um homem dos israelitas era muito dado ao culto e à oração. Uma noite, durante orações, ele pensou em seus pecados e se perguntou: “Ó meu Senhor, quantos pecados eu cometi e ainda assim o Senhor nunca me castigou!” Allah o respondeu: “Ó meu servo, quanto Eu te castigo, mas tu simplesmente não sabes”.

Como Allah nos castiga sem nós sabermos? Pense em todas as nossas orações e atos de adoração que perdemos por causa de distrações, todas as vezes que estamos deprimidos, ansiosos e miseráveis, às vezes sem razão alguma. Pense em todas as pessoas ao nosso redor que nos machucam ou não gostam de nós sem que aparentemente façamos algo errado, ou todos os nossos pequenos problemas que pesam como uma montanha em nossos peitos. Mais importante ainda, pense em todo o tempo quando nossos corações estão separados da luz e do amor de Allah, tanto que até esquecemos a alegria que estamos perdendo. Que punição poderia ser pior, que tristeza poderia ser mais agonizante?

Depressão, ansiedade e outras enfermidades da alma são uma epidemia em nossa sociedade de hoje, e presente entre os muçulmanos. Na verdade são o resultado da privação de nossos corações de amor e conhecimento de Allah, e um castigo para aqueles que negligenciam a raiz dessa privação, bem como um despertar para aqueles que estão cientes disso.

Espero que você não leia este artigo como apenas mais um, mas como um que afetará profundamente sua alma, porque ele aborda um assunto que é a preocupação fundamental de todo muçulmano e, de fato, de todo ser humano: nossa busca incessante pela felicidade. A princípio, isto soa enganosamente simples. Felicidade, claro, é o que todos nós queremos; mas a questão é: O que é felicidade? Que tipo de felicidade? E o mais importante: como conseguimos?

Muitas vezes confundimos o que realmente queremos com a gratificação instantânea de nossos sentidos, apenas para descobrir que estamos errados. Tomemos, por exemplo, as pistas que nossa cultura de consumismo e materialismo (a cultura dominante no mundo de hoje) nos dá sobre a natureza da felicidade. Ao passarmos pelas prateleiras do supermercado, vemos em produtos como sorvetes, barras de chocolate e outros, slogans como “seu passaporte para o céu”, “prazer proibido”, “ceder à tentação de seus sentidos”, e assim por diante. Independentemente da permissibilidade de tais produtos ou de seus slogans, não se pode deixar de sentir uma profunda sensação de engano diante da conexão implícita entre mimar os sentidos e a promessa de êxtase final.

Mas mesmo para aqueles que desconhecem as realidades espirituais, o engano de tais conexões torna-se óbvio quando reconhecem o custo das calorias nocivas e dos produtos químicos artificiais escondidos por trás da gratificação dos sentidos, que causam doenças incuráveis como obesidade, diabetes, câncer, doenças cardiovasculares, e muitas outras. As pessoas que amam apenas a satisfação e o prazer material nesta vida muitas vezes se encontram comendo alimentos sem gordura, sem calorias e sem carboidratos que, francamente, são apenas ligeiramente melhores do que os alimentos que seus animais de estimação consomem. Mesmo eles reconhecem que, a menos que regulamentado, a gratificação a curto prazo pode levar a dores e danos ao corpo a longo prazo.

Mas, se a gratificação de nossos sentidos, por si só, não nos faz felizes, então o que faz? Que tipo de felicidade é duradoura, por um lado, e, por outro, agrada não só aos nossos sentidos, mas também ao nosso ser interior, e não traz nenhum arrependimento ou dano?

Estamos divididos internamente entre aquela parte de nós que quer gratificação instantânea e aquela parte que quer a verdadeira felicidade final, um termo mais apropriado para o que seria “bem-aventurança”. Mas se o que realmente queremos é felicidade, por que nos encontramos tão frequentemente caindo em gratificação a curto prazo?

O segredo é compreender a natureza das forças conflitantes dentro de nós, que nos levam a desejar coisas diferentes. Uma profunda compreensão de si mesmo é o primeiro passo para a verdadeira felicidade.


 

A guerra dentro: O Nafs (ego) versus Qalb (قلب – coração) 

Somos inclinados ao engano e à confusão em nossa busca da felicidade, a menos que reconheçamos que temos dentro de nós duas forças em busca de dois tipos diferentes de “felicidade”.

Nosso Criador Misericordioso nos diz que o nafs humano (o eu, o ego) tem um aspecto enganoso:

{A alma geralmente comanda o mal, e somente aqueles que meu Senhor protege estão a salvo dele} [Alcorão 12:53].

Em outros momentos, o Alcorão também associa a palavra nafs à ganância e às paixões básicas:

{A alma é propensa à avareza} [Alcorão 4:128]

{Saiba que aqueles que lutam contra sua própria ganância serão os vitoriosos.} [Alcorão 64:16]

Outro aspecto do nafs também é mencionado no Alcorão, quando Allah faz um juramento de an-nafs ao lawama (o eu culpado), ou seja, aquele eu interior que culpa uma alma por seus pecados. Mas muitas vezes, quando a palavra nafs é usada no Alcorão por si só, ela se refere ao eu inferior que busca o prazer mundano a curto prazo, como visto nos versos acima.

Por outro lado, há o qalb (árabe: قلب), o coração. Diz-se que o qalb é aquele aspecto de nós que busca a felicidade suprema e a paz, e o encontra somente na lembrança de Allah: {Os corações dos crentes se acalmam com a lembrança de Deus} [Alcorão 13:28].

Neste verso, a palavra usada para a felicidade dos corações é itminan, que significa satisfação, paz e alegria, em uma palavra, tranquilidade.

Por outro lado, alguns estudiosos da ciência islâmica usam o termo ruh para se referir ao que aqui é chamado de qalb (Falaremos mais sobre o ruh nas próximas partes deste artigo). Escolhemos usar qalb (قلب), porque no Alcorão a palavra ruh é usada para significar coisas diferentes, tais como o anjo Gabriel ou o sopro divino simbólico, mas nunca para se referir ao aspecto moral do ser humano, para o qual o Alcorão usa a palavra qalb.

Por exemplo, Allah diz no Alcorão

{Dia em que de nada valerão bens ou filhos. Salvo para quem comparecer ante Deus com um coração sincero.} [Alcorão 26:88-89]

Sobre seu amado servo Abraão, Allah diz: {Que se consagrou ao seu Senhor de coração sincero} [Alcorão 37:84].

O Paraíso será preparado para aqueles que {Que teme intimamente o Clemente e comparece, com um coração contrito.} [Alcorão 50:33].

A verdadeira mensagem só pode ser recebida e compreendida por aqueles que têm um coração vivo, cujo coração não foi selado ou aniquilado por sua vaidade e nafs rebeldes: {Em verdade, nisto há uma mensagem para aquele que tem coração, que escuta atentamente e é testemunha (da verdade)}. [Alcorão 50:37].

Se alguém ama a Allah, Allah guia seu coração e o enche de amor e conhecimento divino:{Jamais acontecerá calamidade alguma, senão com a ordem de Deus. Mas, a quem crer em Deus, Ele lhe iluminará o coração, porque Deus é Onisciente} [Alcorão 64:11].

O Mensageiro de Allah (que a paz e as bênçãos de Allah estejam sobre ele) também usava o termo qalb para se referir ao sentido moral do homem, que é a fonte de todo o bem e do mal. Um hadith reconhecido diz: “…No corpo há um pedaço de carne que, se for saudável, todo o corpo será saudável; e se for corrupto, todo o corpo será corrupto”. Esse é o coração” (Bukhari, Muslim e Ibn Majah).

Assim, a parte da alma que comanda o mal foi chamada aqui de nafs; enquanto a parte que anseia por tranquilidade buscando e lembrando Allah, foi chamada de qalb.

É verdade que os termos nafs (ego) e qalb (coração) são às vezes usados de forma intercambiável no Alcorão. Entretanto, sempre que estes dois termos são usados absolutamente sem qualificação, nafs se refere àquele aspecto em nós que busca gratificação instantânea e que é o anfitrião da ganância e de outros vícios, enquanto qalb se refere àquela parte de nossa alma que busca apenas Allah, e não pode estar em paz até que Allah a encha de conhecimento e amor.

Qalb é onde residem as emoções, sentimentos e motivações. Por sua própria natureza, anseia por estar cheio de fé e certeza em Allah, com Seu amor e medo, com altas aspirações e motivos piedosos, e com misericórdia, justiça e bondade para com outros seres humanos. Assim como nosso corpo fica doente se for alimentado com coisas podres ou uma dieta prejudicial ou desequilibrada, o coração fica doente quando está cheio de dúvidas ou descrença em Allah, ou com doenças morais como ciúmes, ódio, malícia, luxúria, maldade, depressão e covardia.

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